17/11/10

A volta

Parei no fragmento quando o protagonista volta a sua casa e li 2 ou 3 vezes..:

“...vou dissolver-me nos teus bra
ços há tanto tempo sós, ver nascer a manhã na janela estreita do tecto, ao teu lado,[...] vou tocar na tua pele, [...] o espaço claro que separa os seios e possui o brilho nacarado de certas conchas secretas que a vazante exibe com o orglho de um tesouro, vou entrar em ti devagar, até ao fundo, apoiado nos braços estendidos para assistir à alegria gritada do orgasmo..”.Fala da sua mulher, dos seus desejos. Vejo nesse trecho o amor, a dedicação, o cuidado, a delicadeza e as saudades de calor e intimidade. As palavras dele são tenras e doces, criam a impressão de happy end dos filmes americanos: o protagonista-soldado volta a casa e já todos estão felizes. Mas a vida continua apesar de protagonista quer o seu happy end..:
“..uma explosão de lágrimas a inchar, enovelada, na garganta, encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço, [...] e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra,[...] comecei a afastar os cobertores sem uma palavra, e me receber inteiro na cova morna do colchão..”.  O que me estranha são as palavras “uma mulher numa cama e uma criança num berço”.
“Uma”? Porque não usa a palavra “minha”? Sente-se tão alienado? Sente que já não pertence a esse lugar, a essa realidade? Mas deita-se sob o cobertor, perto da sua mulher para receber o calor que lhe faltava tanto durante o tempo pasado na terra africana..Talvez espere que esse calor vai ser uma cura para a dor da guerra.

5 comentários:

  1. De facto, parece que até as coisas e as pessoas tão próprias e próximas como a sua mulher e a sua filha, assim como a sua cama, depois da experiência da guerra já não parecem ser "suas" mas, sim, "umas". Tudo torna-se alheio, as atrocidades da guerra mudam a visão do mundo que nunca mais parece nosso, conhecido, próximo. É UM mundo, UMA realidade nova, vista duma óptica completamente nova.

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  2. O que pode-se observar aqui é a retórica do "nostos" negativo - o topos do regresso do herói que encontra em torno de si um mundo totalmente estranho, e sente-se completamente absurdo e alheio perante e mundo e as coisas (num contexto foucaultiano podíamos dizer que perante "les mots et les choses" quer dizer tanto perante as coisas como perante a própria linguagem. Lembre-se o caso de Jorge Semprun para que levou mais de 20 anos lutar com esta verfremdung da linguagem antes de poder escrever "Le grand voyage").A mesma situacao pode-se observar nas narrativas de holocaust que tematizam o regresso dos que conseguiram sobreviver o inferno da história. O jovem protagonista do "Faithlessness" de Imre Kertész enfrenta um mundo cruel e alheio voltando de Auschwitz. O que falta aqui, depois deste mergulho profundo no inferno da humanidade e da história (tanto o horror de Auschwitz, como da guerra colonial portuguesa) é a possibilidade da reconstituicao e da salvacao. nao há apokatastase, nao há salvacao, nao há ordem no mundo. O caos nao se pode tornar outravez em cosmos porque o inferno que se tinha aberto sobrevive no coracao do indivíduo

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  3. Boa, a achega do Urban. Numa tentativa de despertar alguma polémica, havia por aqui alguém que defendia que este romance, ao contrário do que diz o Urbán, concretiza uma salvação pela escrita feita desabafo de bar. Alguém falava de Cus de Judas como um romance-terapia. Por outro lado, a Maria Alzira Seixo no capítulo dedicado aos "Cus de Judas" no volume "Os Romances de António Lobo Antunes olha para a última descrição do livro como uma abertura para a salvação.

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  4. já nao me lembro da última descricao do livro. li-o há 2-3 anos atrás. mas acho que o universo de antónio lobo antunes exclui todas as formas possíveis de uma salvacao ou redempcao. o ser - tal qual - é um cataclismo, uma privacao, um fragmento que nao se pode completar. a visao antuniana da existéncia é a visao do anjo caído que virou de costas para o seu Deus -evocado por Rilke- e que vé só o lado negativo do mundo como fotografia. nao me lembro da última descricao do cus de judas, mas lembro-me perfeitamenta da última descricao grotesca e amarga de As Naus que torna evidente a impossibilidade de qualquer salvacao

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  5. Eu gostaria que existisse a possibilidade de uma salvação bem provável, mas o que encontramos no fim do romance não passa de uma alusão nítida. Será que é a rotina que é a única salvação do homem que passou pela guerra? Ou será a actuação constante a criação eterna de aparencias?( O exemplo de Dexter parece-me ótimo)

    «Não, não, siga sempre em frente, vire na primeira à direita, na segunda à direita a seguir, e como quem não quer a coisa está na Praceta do Areeiro. A salvo. Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros, lavar os copos, dar um arranjo à sala, olhar o rio. Talves volte para a cama desfeita, puxe os lençóis para cima e feche os olhos. Nunca se sabe, não é?, mas pode bem acontecer que a tia Teresa me visite»

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