20/12/10

reflexão sobre a anamorfose

No artigo de Maria Cristina Chaves de Carvalho (pubicado no meu blogue alguns dias antes) falta-me alguma ordem: a autora podia já no início apresentar uma explicação o que é a anamorfose. Ainda bem que essa explicação aparece:

“A anamorfose é uma rubrica das artes plásticas e representa uma figura, um objeto ou uma cena de maneira que, quando contemplada frontalmente, torna-se distorcida e até mesmo irreconhecível, aparecendo com nitidez somente quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, ou ainda com o uso de lentes especiais, ou com a ajuda de um espelho curvo.”

Acho que é mais fácil explicar o fenômeno da anamorfose na literatura começando com os exemplos nas artes plásticas. Aqui alguns exemplos (infelizmente não conheço nem títulos nem nomes dos autores, encontrei os quadros no artigo sobre a anamorfose: http://antropologia-literatury.blogspot.com/2010/05/spotkanie-xliv-anamorfoza-w-literaturze.html)


Podemos observar que o conteudo/ o tema muda: depende o que vamos achar o foundo e o que vai servir de ponto central. Assim no primeiro quadro podemos ver uma mulher na rua ou (se vamos mudar da perspectiva) uma cara.
Alguns tratam a anamorfose como um truque óptico mas ela serve também como uma chave para ver uma outra realidade que está oculta. O nosso mundo nem sempre é o que parece ser, basta mudar um pouco a perspectiva e podemos ver outras coisas. A anamorfose exige de um expectador/ leitor um esforço intlectual, habilidade de ver em várias dimensões. Mostra que muitas as vezes rendemo-nos a uma ilusão.
Na literatura, como assegura a autora do artigo, a
anamorfose é o discurso do espectador, pois neste caso há algo na obra de arte que lhe é ocultado, impelindo aquele que a aprecia a participar de sua feitura. No caso da pintura como da literatura muito depende do receptor/leitor: se vai captar a ilusão, uma outra dimensão.
Admito que para mim é muito mais fácil descobrir a anamorfose numa obra plástica do que num texto literário. Infelizmente o artigo de
Maria Cristina Chaves de Carvalho  já não apresenta nenhuma definição clara como é construida a anamorfose numa obra literária, em que reside. No caso do Livro “Os Cus de Judas” será que toda a Obra pode constituir uma grande anamorfose? Tenho a ideia que o leitor tem que encontrar entre todas as múltiplas histórias, algum centro, algum ponto central (como na anamorfose nas artes plásticas) para ser capaz de encontrar uma visão que o autor preparou. Acho que o protagonista do livro serve como uma prisma- foca todas as histórias e todos os enredos que contados por ele criam uma dimensão nova, um outro fundo. É só a minha reflexão, não sei bem se é certa.

14/12/10

questão de anamorfose

Encontrei um texto interessante sobre a anamrofose nos romances de António Lobo Antunes e queria partilhá-lo com vocês.

“A expressão da anamorfose – como forma modificada da escrita ou como reescrita textual da matéria narrada – pode ser configurada como um procedimento estético que permeia algumas narrativas de António Lobo Antunes. ALA obriga o leitor a
deslocar-se no texto diante de suas múltiplas histórias, as suas e as dos outros. Esse processo criativo pode ser compreendido como uma perspectiva em anamorfose. Severo Sarduy esclarece:

“Dilatação de um contorno e duplicação do centro: ou antes, deslizar programado do ponto
de vista, desde a posição frontal até esse ponto máximo de lateralidade que permite a
constituição de uma outra figura regular: anamorfose. (SARDUY, 1988:65)
Embora António Lobo Antunes exponha, em seu processo singular de criação, toda a construção do tecido literário, parece buscar de modo obsessivo o “regresso a si mesmo” (SARDUY, 1988:54), isto é, a revisão de seus procedimentos de escrita,
demonstrando simultaneamente uma preocupação com a descoberta do outro, que se mostra ou é visto em imagem distorcida ou anamórfica.
Em outro ensaio de Severo Sarduy, intitulado “La simulación”, o autor assegura
que a anamorfose é o discurso do espectador, pois neste caso há algo na obra de arte que lhe é ocultado, impelindo aquele que a aprecia a participar de sua feitura. A anamorfose é uma rubrica das artes plásticas e representa uma figura, um objeto ou uma cena de maneira que, quando contemplada frontalmente, torna-se distorcida e até mesmo irreconhecível, aparecendo com nitidez somente quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, ou ainda com o uso de lentes especiais, ou com a ajuda de um espelho curvo. Para Sarduy,
A anamorfose e o discurso do espectador como forma de ocultação: algo que se oculta ao
sujeito – e daí o seu mal estar – e não pode ser lido, revela mais que uma mudança de lugar.
O sujeito está implicado na leitura do espetáculo, na tradução do discurso, precisamente
porque isso que de imediato não consegue ver ou ouvir o transforma diretamente no sujeito.
O inquietante é que a relação frontal do sujeito ao espetáculo não possa ser considerado
como algo adquirido com a certeza de uma premissa. (SARDUY, 1999: 1276-77)

Desse modo, cabe ao leitor deslocar-se no texto porque precisa constantemente
retomar vários aspectos da narrativa, juntar os relatos a partir de memórias
fragmentadas, e situando-se em tempos e espaços que se superpõem ao longo de todo o romance. Esse modo não habitual de tratar a palavra pode ser compreendido neste estudo a partir da etimologia da palavra “anamorfose”, pois “morfose” significa a aquisição de uma forma, enquanto anamorfose, quer dizer “formado de novo”. Portanto, todo o processo de criação do autor culmina em metamorfose, pois esta implica a mudança completa da forma. Logo, as vozes que pertencem a essas personagens cujos “vagos rostos” são informes, fazem parte de uma narrativa marcada por uma perspectiva em anamorfose, cuja escrita indefinida se mantém em um processo contínuo de mudança, desdobrando-se em metamorfose.”


Fragmento do texto “A ANAMORFOSE NA ESCRITURA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES” de
Maria Cristina Chaves de Carvalho (Doutoranda em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense (UFF).)

12/12/10

António Lobo Antunes: Crónicas

As crónicas de António Lobo Antunes constituem um quadro da sociedade lisboeta e na minha opinião também um quadro da classe média do séc. XXI. Encontramos nelas as descrições das vivências quotidianas e dos acontecimentos mais ou menos banais.
“Entre o kitsch da pequena burguesia consumista, o tédio dos domingos, o peso do vazio e o desencanto, o nevitável fracasso das relações amorosas, o que Lobo Antunes aqui nos propõe é a lúcida deambulação através de um universo de aprisonamento e a visão amarga, corrosiva duma sociedade em processo de mutação.” (Maria Graciete Besse em: http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=149&p=437&o=p )
As crónicas descrevem a classe media portuguesa especialmente o ambiente lisboeta e o quotidiano. Lobo Antunes apresenta-nos uma realidade triste, não a vida mas a vegetação. Os protagonistas desses textos vivem numa ilusão da felicidade, numa  ilusão que as coisas materiais vão garantir alegria, felicidade, paz e amor em casa, assim como o protagonista do texto “A propósito de ti”. O narrador em primeira pessoa fala : “Somos felizes. Acabámos de pagar a casa [...]. Somos felizes: preferimos a mesma novela [...].Somos felizes. A prova de que somos felizes é que comprámos o cão [...].”.  As repetições introduzem um tom obsessivo, criam um clima inquietador. Esta obsessividade gira completamente em torno da relação do protagonista com a mulher. Onde é que está essa felicidade? O protagonista tem a casa, comprou várias coisas ainda o cão. Mas falta algo nesse quadro “perfeito”... Perdeu-se o amor. Perderam-se as paixões, as coisas que dão o senso à vida. Sem elas a vida torna- se uma vegetação, uma existência obscura e miserável. As pessoas continuam num sofá em frente da televisão. E que típo de existência é essa?
 "Na realidade é um Portugal tristíssimo, e quem o descreve năo ignora que dele tem uma saudade antecipada porque tudo o que morre, por igual, nos pertence. Daí que haja em contraponto, para lá da comicidade grotesca ou patética de certas situaçőes, uma espécie de angústia opressora que nasce dessa frustraçăo resignada que é afinal tăo tragicamente portuguesa, e constitui como que o bilhete de identidade dum país inteiro.” (
in Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XV, nş642, Maio de 1995)
Lê-se muito bem as crónicas de Lobo Antunes. O seu caráter universal e intemporal faz que a realidade apresentada pode ser recebida bem pelo um leitor português mas ao mesmo tempo também pelo um leitor polaco. Os pormenores, os pequenos hábitos constituem as fotografias dos nossos tempos.

Os Cus De Judas: As impressões finais


Na história do protagonista aparecem os raios de esperança que nem tudo está perdido. O primeiro raio é a mulher angolana: Sofia. Quando o protagonista fala dela o mundo parece ter mais cores, desaparecem os horrores da guerra colonial..
“A tua casa, Sofia, cheirava vivo, a coisa viva e alegre como o teu riso repentino, a coisa quente e saudável e delicada e invencível [...].” Aparece uma chance da vida normal, chance de combater a inquietação e insegurança que cresceram no coração do homem. Infelizmente... Sofia acaba violada com “o bilhete para Luanda”.
Uma mais morte absurda nessa guerra sem senso. A morte que marca o protagonista profundamente e ele não pode fazer nada para diminuir o seu sofrimento. A história de Sofia constitui uma crítica relevante sobre os atos irracionais que não trazem benefício nenhum. Uma crítica da guerra privada do senso, a guerra que os soldados não reconheciam como sua e regressaram marcados profundamente com a culpa, a vergonha e os remorsos dos seus actos.
Assim o livro de António Lobo Antunes constitui uma crítica social e política e ao mesmo tempo o estudo sobre os efeitos devastadores, a impossibilidade do amor e da readaptação.

28/11/10

'Para a sua casa ou a minha?'

Incapaz de comunicar-se com as outras pessoas, submergido numa solidão doída, o protagonista não consegue se abrir e exercer o diálogo com os outros... Sobreviveu a guerra mas será capaz de amar? De continuar viver?
Já vejo que não. A vida dele depois da volta constituem as noites no bar e as vezes sexo com algumas mulheres desconhecidas. Sexo sem amor, sem sentimentos, só um acto privado de calor e de ternura apresentado através do erotismo cru e pouco poético.


Imagem do filme "Waltz with Bashir"
  ‘Para sua casa ou para a minha?’ - pergunta o protagonista e continua:
‘Despedimo-nos no vestibulo trocando numeros de telefone que imediatamente se esquecem.’.
Um dos muitos monólogos em que ele se dirige quase exclusivamente para si mesmo.
Não há espaço para a mulher do bar, não há a voz dela. Só ele e as lembranças, o desespero do homem que não consegue escapar das experiências do passado que o destruiu psicologicamente..
Continua a viver em Lisboa mas que vida é essa?
O seu apartamento parece ser um quarto dos hoteis, sem as fotos da familia, só os moveis.. Um espaço vazio para cultivar a sua solidão. Afinal o protagonista parece-me não um ser humano mas... um bicho. Que cumpre os seus instinctos, não se importa com os outros concentrado em si próprio, perdido num labirinto do passado.
O que vocês acham sobre essa compração?

“O que fazemos nós aqui?”


imagem da Wikipedia
 Enganei-me com a primeira impressão que o protagonista não critica a guerra colonial fortemente.. Os meses em Angola passam e ele está cheio de angustia e de sofrimento.  Queixa-se por sua situação, por causa de pensões da miséria para as mulheres de soldados, por causa dos companheiros que pedem: ‘Me arranja uma doença doutor.’
O nojo, as saudades de casa e a pergunta que volta a ele todos os dias: “O que fazemos nós aqui?”. E ele, um homem culto, que no seu monólogo faz as referências às obras de Arte, ele que testemunha a crueldade da guerra que o marca profundamente, ele não sabe a resposta.
Fala sobre si e seus companheiros :
‘..Nascidos sob o signo da Mocidade Portuguesa e do seu patriotismo veemente e estúpido de pacotilha, alimentados culturalmente pelo ramal da Beira Baixa, os rios de Moçambique e as serras do sistema Galaico-Duriense, espiados pelos mil olhos ferozes da PIDE, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra..”.
Já é bem visível que o protagonista não concorda com a política da Metrópole, queixa-se dela, queixa-se da censura, da violência e miséria mas ao mesmo tempo não luta contra...
É indiferente e apático. A única coisa que faz é uma crítica.
É por causa do medo ou do caráter fraco?
Na minha opinião é o medo que paralisa-lo. Isso é bem compreensível, no tempo da guerra paga se pela deserção com sua própria vida...

17/11/10

A volta

Parei no fragmento quando o protagonista volta a sua casa e li 2 ou 3 vezes..:

“...vou dissolver-me nos teus bra
ços há tanto tempo sós, ver nascer a manhã na janela estreita do tecto, ao teu lado,[...] vou tocar na tua pele, [...] o espaço claro que separa os seios e possui o brilho nacarado de certas conchas secretas que a vazante exibe com o orglho de um tesouro, vou entrar em ti devagar, até ao fundo, apoiado nos braços estendidos para assistir à alegria gritada do orgasmo..”.Fala da sua mulher, dos seus desejos. Vejo nesse trecho o amor, a dedicação, o cuidado, a delicadeza e as saudades de calor e intimidade. As palavras dele são tenras e doces, criam a impressão de happy end dos filmes americanos: o protagonista-soldado volta a casa e já todos estão felizes. Mas a vida continua apesar de protagonista quer o seu happy end..:
“..uma explosão de lágrimas a inchar, enovelada, na garganta, encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço, [...] e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra,[...] comecei a afastar os cobertores sem uma palavra, e me receber inteiro na cova morna do colchão..”.  O que me estranha são as palavras “uma mulher numa cama e uma criança num berço”.
“Uma”? Porque não usa a palavra “minha”? Sente-se tão alienado? Sente que já não pertence a esse lugar, a essa realidade? Mas deita-se sob o cobertor, perto da sua mulher para receber o calor que lhe faltava tanto durante o tempo pasado na terra africana..Talvez espere que esse calor vai ser uma cura para a dor da guerra.

Sensibilidade pelos pormenores

Lendo “Os Cus de Judas” reparo uma sensibilidade incrível do escritor, sensibilidade pelos pormenores que para os outros podem parecer pouco importantes mas que na verdade constituem a essência da vida e do seu romance.
O narrador conduz-nos pela s
érie de segundos planos que construem um desenho da vida, do quotidiano do protagonista.
Quando leio parece-me como se o escritor abrisse em frente de mim as gavetas com v
árias coisas, nem tenho tempo para dar uma olhada dentro duma, ele, já abre outra, voces entendem o que quero dizer? - O protagonista fala da guerra e de repente muda o tema para a sua infância, para as coxas de mulheres angolanas, misturando o passado com o futuro e o presente. Como diz o protagonista :
“Os romances por escrever acumulavam-se-me no sótão da cabeça à maneira de aparelhos antiquados reduzidos a um amontoado de peças dispares que eu não lograria reunir..”.
Esses "romances por escrever" parecem-me as histórias/pensamentos que o protaginista/narrador começa e não acaba. Vocês não se perdem nesse labirinto de segundos planos, episódios inacabados e com a mistura do futuro/presente/passado??
Sinto que o escritor preparou mais surpresas para nos..

Experiências da guerra

“Se a revolução acabou, percebe? [...] nós, os sobreviventes, continuamos tão duvidosos de estar vivos que temos receio de, através da impossibilidade de um movimento qualquer, nos apercebemos de que não existe carne nos ossos gestos nem som nas palavras que dizemos, nos apercebemos que estamos mortos..”.
Se a Guerra acabou? Como agora voltar a casa depois de ver tantas mortes, tantos cadáveres, as inocentes crianças de Angola?
Como voltar à vida normal? Ou talvez “normal”... entendem?
O que vai ser normal depois de experiências da guerra..?
“[...]
Os nomes vazios e inequívocos:         To są nazwy puste i jednoznaczne: 
O homem e o animal                           Człowiek i zwierzę 
O amor e o ódio                                   Miłość i nienawiść 
O inimigo e o amigo                            Wróg i przyjaciel 
A escuridão e a luz.                              Ciemność i światło. 
 
Mata-se um homem como um animal Człowieka tak się zabija jak zwierzę 
Eu vi:                                                     Widziałem: 
Furgões de homens cortados               Furgony porąbanych ludzi 
Que não vão ser salvos                        Którzy nie zostaną zbawieni. 
 
Os termos são só as palavras:              Pojęcia są tylko wyrazami: 
A virtude e a delinquência                    Cnota i występek 
A verdade e a mentira                          Prawda i kłamstwo 
A beleza e a feiura                                Piękno i brzydota 
A bravura e a covardia.                         Męstwo i tchórzostwo. 
 […]
Procuro um professor e mestre              Szukam nauczyciela i mistrza 
Que me recupere visão audição e fala Niech przywróci mi wzrok słuch i mowę 
Que chame mais uma vez as coisas     Niech jeszcze raz nazwie rzeczy

e os termos                                            i pojęcia 
Que separe a luz da escuridão.            Niech oddzieli światło od ciemności.
[...]” 

„Salvo”/”Ocalony” de Tadeusz Różewicz 
Minha tradução imprerfeita, desculpem-me, mas achei esse poema adequado a temática, porque constitui uma análise do estado da mente humana, mente de um homem que experienciou a queda dos valores, da religião e da ética.
A guerra, qualquer que seja, sempre denuncia o mal do nosso mundo. Os valores acabam de existir, a civilização prova a sua impotência em relação a violência.. Homem é condenado a existência sem valores e praticamente sem senso, sem alvo.
O protagonista de “Os Cus de Judas” sente-se resignado e solitário, começa a falar do seu medo, do perigo duma morte:
“..eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer...”.
Gosto muito dessas repetiçoes que ainda mais acentuam certos sentimentos e  coisas. Gosto como Lobo Antunes consegue falar do medo humano sem por na boca do protagonista palavras “tenho medo” mas ... mostrando fraqueza humana na situações simples: “...embarquei a 6 de Janeiro e na noite do fim do ano tranquei-me no quarto de banho para chorar, um boli-rei impossível de engolir entupia-me na garganta...”.

“Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a dia acabarà por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola interior, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor-de-novembro da alcatifa.”..

Que sinceridade e resignação.. O que vocês acham, por que a guerra fez do protagonista ‘solteirão melancólico’? Pois ele teve a mulher e a criança que esperavam ao seu regresso da Africa..
Espero encontrar uma resposta durante a leitura.

“-Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.”

Qualquer guerra que seja traz consigo sempre as experiências tristes e duras.
No livro de António Lobo Antunes aparece o tema de transformação de homem e a questão da perda da inocência. Parece-me que o protagonista de “Os cus de Judas” já é o adulto quando levado a Africa, pois não é que cada homem tem em si um menino?

“-Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência [...] prolongava-se em ecos estridentes..”.


Toda a família desejava ver o protagonista como o soldado. Em cada sociedade acha-se que o serviço militar transforma jovens em homens adultos. Isso constitui algum tipo de iniciação, de ritual. S
egundo os psicólogos, a falta desse ritual e da metamorfose pode gerar o sentimento de irrealização e falta do senso e do valor da vida do homem. Acha-se que o serviço militar vai transformar os rapazes desajeitados em homens fortes e maduros. Isso lembra-me das histórias sobre os nossos poetas polaco do periodo da Segunda Guerra Mundial- rapazes que lutavam como os adultos, tinham corajem de morrer pela sua pátria, criam que a luta tinha senso. E o que isso tem com o livro de Lobo Antunes? Constitui um contraste. Sei que falo de duas guerras completamente diferentes mas deixam-me explicar... O protagonista sente o absurdo da guerra colonial: “..lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso..”. Não luta activamente, é um médico e muitas vezes não consegue salvar a vida dos soldados. Vê muitas mortes mas não encontra nenhuma resposta para a pergunta “por que?”. Por que lutam eles todos? Por que morrem? Em nome "de ideais veementes e imbecis"? Por que foram trazidos a essas terras Africanas que pouco lhes interessam? Longe de familias, de amigos, de casas, de suas vidas.
“De modo quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, agradecia ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose [...] impotente à sua própria morte.”. Dose do sarcasmo só sublinha o pesar do protagonista que se submerge numa estagnação, impotência e talvez no alcoolismo... Assim o escritor afasta-se de criar uma versão heróica e epopeica da história.

(desculpa por essa fonte pequena, tentei mudar, mas nao da...)

Padrões manuelinos e latas de conserva vazias

Já sei que o protagonista toma parte na Guerra Colonial, é o médico e acompanha uma tropa que foi movida a Angola. As descrições de pobre país africano, sujo cais e miséria de bairros de Luanda misturam-se com os sentimentos do protagonista que não  nenhum senso nessa guerra. Não a trata como “sua”, não a critica directamente nem com força (pelo menos nos primeiros capítulos)... Mas fala dela com certa dose de despeito e da ironia :

“..em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presen
ça aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinaçã
o de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta..”.
Ou talvez isso j
á é uma crítica forte?- Chamar os grandes feitos da raça portuguesa, os descobrimentos e a cristianizaçao “presença aventureira”?! Sra. Kalewska não estaria satisfeita com isso..
Agora, mais a s
ério.. O protagonista está insatisfeito de ser levado da sua casa em Lisboa e movido a terra Africana:  “[...]um sentimento esquisito de absurdo, cujo desconforto persistente vinha sentido desde a partida de Lisboa.”
Absurdo, absurdo e uma vez mais absurdo da guerra : “..vi os soldados correrem de arma em punho [...] e depois as vozes, os gritos [...] tudo aquilo, a tens
ão, a falta de comida decente, os alojamentos precários, a água que os filtros transformavam numa papa de papel-cavalonho indigesta, o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquiá
tricos..”.Procurando alguma informação sobre a literatura portuguesa da guerra colonial, encontrei na página de http://coloquio.gulbenkian.pt um texto de Luís Mourão, texto, que na verdade constitui uma recensão da obra “A Guerra Colonial e o Romance Português” de Rui de Azevedo Teixeira. Esse livro constitui o primeiro estudo de algum fôlego sobre o romance português cuja temática se liga directamente à guerra colonial. O autor analisa os oito romances entre quais situa-se também a nossa leitura- “Os Cus de Judas”, por isso achei isso interessante.
Autor desenha uma tese que a literatura portuguesa da guerra colonial, sobretudo no pós-25 de Abril, “se deixa resumir numa agonia colectiva e numa catarse individual.”. Segundo o autor, as carater
ísticas gerais desses textos (também de “Os Cus de Judas”) são : a guerra denunciada como absurdo e o erro do regime, com consequentes sentimentos de culpa, exercícios de desmistificação e mesmo de autopunição; “a guerra como sintoma de decadência de uma portugalidade que se ausculta apartir dos mitos e/ou das situações da nossa história”. Isso refere-se perfeitamente ao nosso protagonista. Tenho ideia que ele tenta afastar se da Guerra e fugir do absurdo dela mergulhando nas suas lembranças e nos pensamentos todos os dias:
“..lutando contra um inimigo invis
ível, contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um véu de luto, e que puxo para cima da cabeç
a a fim de dormir..”.Estou curiosa o que vocês acham sobre esses “padrões manuelinos e latas de conserva vazias”?

*(o link para o texto de Luís Mourão http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=157&p=438&o=p )

Num bar


O escritor leva-nos ao bar onde fica o protagonista.

“Nao quer passar ao vodka?”

Consigo imaginar um desses lugares dos filmes americanos: um bar velho onde sempre h
á pouca luz, está sujo, o protagonista asentado pede o copo seguinte..

“[...]este bar e os seus candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso, os seus habitantes de cabe
ças juntas segredando-se banalidades deliciosas na euforia suave do álcool, a música de fundo a conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos que não possuimos nunca..”. 

Imagino-lo sozinho, alienado. Um copo vazio em frente dele. Fumando, observa no espelho a sua cara cansada...
Talvez toda a ac
ção do livro decorre nesse lugar onde um homem, cujo nome não conheço, está matando com a vodka a dor da vida, a dor da guerra.
Desiludido, abandonado, conta as historias da sua vida, misturando o passado com o presente e o futuro.
Imaginava-lo sozinho mas o protagonista dirige-se a uma mulher: “N
ão quer passar a vodka?” e “Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com outro..?”. Não hà resposta.
Ser
á que essa mulher existe na verdade? Ou isso é só um monólogo dum bêbado, que sente-se tão solitário que inventa uma mulher? Inventa alguém que pode escutar-lhe. E quem vai ser um ouvinte melhor se não uma mulher, assentada perto dele, fumando em silêcio..? Isso lembra me da protagonista de “Onze Minutos” de Coelho. Vocês leram? A protagonista, uma prostituta, não só cumpria os desejos sexuais dos seus clientes mas sabia que os homens queriam também ser escutados. Que foram tão frustrados, desiludidos e perdidos com sua vida que procuravam dum ouvinte. E ela foi o melhor..
“Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com outro..?”. -Pergunta o protagonista de “Os Cus de Judas”. Mas ele na verdade quer fazer amor? Ou quer simplesmente falar com algu
ém?
N
ão estou convencida se essa mulher existe na verdade..
Por que a inven
ção?- Porque escritor queria sublinhar a solidão, a falta de esperança e tornar o protagonista ainda mais alienado. Isso também deixou o escritor dirigir-se ao leitor, nas páginas seguintes lemos “Escute.”, “Olhe para mim, preciso tanto que me escute.” etc.
Isso faz que eu me sinto como se o protagonista dirigia-se a mim, contava a mim a sua história.
Voltando a mulher do bar... Talvez ela existe.. Mas n
ão responde às perguntas. Ou talvez bêbado já não consegue as ouvir..
É capaz de amar? Desculpe a pergunta é tola, todas as mulheres são capazes  de amar e as que o não são amam-se a si próprias..”.
Ent
ão ele pergunta e responde sozinho.. É um monólogo ou não, mulher existe ou é só um produto da imaginação? O que vocês acham?

Eu ainda n
ão sei... E sinto que essa questão vai voltar a mim nas páginas seguintes.